terça-feira, 2 de abril de 2013

Transporte Público - Iniciando o Diálogo

Dia 28 de março um protesto violento eclodiu em Porto Alegre contra o aumento das passagens de ônibus. Ele foi precedido - e sucedido - por diversas outras manifestações pacíficas. No cerne deste movimento está um repúdio não apenas ao valor corrente das passagens, mas à situação do transporte público.
O Discutindo Porto Alegre publicará uma série de artigos sobre o problema do transporte público de Porto Alegre. A questão será abordada sob diversos pontos: jargões da área, como o custo da passagem é calculado, simulações de alternativas, a falácia do crescimento dos isentos, entre outros. A abordagem será qualitativa e quantitativa, resultado de um trabalho exaustivo de análise de dados fornecidos pela EPTC, pela Prefeitura e por outras fontes. 

Hoje - Iniciando o Diálogo

A primeira parte deste trabalho se focará em nivelar o debate, partindo dos conceitos mais básicos até elementos menos conhecidos do sistema. A partir deste ponto, teremos um vocabulário definido e uma noção de como o sistema funciona.

Começando pelo Básico

O sistema de transporte de uma cidade é composto de vários modais, termo usado para definir qual meio uma pessoa utiliza para chegar do ponto A ao ponto B. São modais o trem, metrô, ônibus, carro, bicicleta, catamarã, transporte escolar e o muitas vezes relegado, mas fundamental, pedestre! Aviões e barcos também são modais, mas não entram nesta discussão, pois não realizam transporte urbano. Todos os modais possuem vantagens e desvantagens. Bicicletas são flexíveis, mas pouco úteis para transportes de grandes cargas. Carros são rápidos, mas agregam poluição, fatalidades e ocupam muito espaço.

A EPTC, empresa responsável pelo transporte e circulação da cidade, lista 6 modais na seção "Transporte" de seu site (referindo-se ao sistema público de transporte):

  • Ciclovias: Representado pelo sistema BikePoa;
  • Hidroviário: Representado pelos catamarãs que fazem o trajeto (Porto Alegre - Guaíba). Particularmente, eu não listaria este sistema, pois estamos falando de transporte urbano e não interurbano. Neste caso, diversos outros modais deveriam ser citados ou expandidos. É importante citar, entretanto, que haverá em breve linhas urbanas de catamarã, ligando o centro à zona sul.
  • Escolar: Vans cadastradas junto à prefeitura que realizam o transporte de crianças para as escolas;
  • Lotação: Sistema de ônibus seletivo. Possui tamanho do carro intermediário e tarifação diferenciada, mas controlada.
  • Táxi: Compreende tanto os táxis normais, tele-táxi e táxis do aeroporto;
  • Ônibus: Linhas urbanas de ônibus. São as responsáveis pela maior parte do transporte na cidade e serão o alvo deste artigo (não serão consideradas linhas interurbanas).

O sistema de transporte por ônibus, chamado, de forma simplificada, de sistema de transporte coletivo de Porto Alegre (e referenciado como tal ao longo deste artigo) é composto por 4 consórcios que dividem a cidade de forma geográfica:

  • STS: Zona sul;
  • Unibus: Zona leste;
  • Conorte: Zona norte;
  • Carris: Região central e transversais.

Cada um destes consórcios são compostos por um grupo de empresas individuais, que se agregaram desta forma na década de 90 sob a justificativa de redução de custos. O sistema é composto por 13 empresas, sendo elas a Carris (pública) e 12 empresas privadas.

Os ônibus circulam na cidade orientados por linhas, que definem o trajeto e conjunto de horários para circulação, a serem feita por um ou mais carros. Cada linha possui, assim, um tempo de trajeto (tempo médio levado para percorrer o trecho) e uma distância de trajeto associados. Cada uma das linhas são exploradas por um consórcio. Assim, o consórcio possui o monopólio sobre a linha, não sendo possível outras empresas fornecer concorrência. Desta forma, não temos um mercado livre, mas sim um regime de concessão pública regulado. O sistema possui hoje 400 linhas.

Os ônibus circulam pelas ruas da cidade, podendo ou não haver segregação da via (reserva apenas para circulação de ônibus). Vias segregadas possuem, em teoria, a vantagem de reduzir o tempo de trajeto. Esta premissa é válida se o fluxo de carros for maior que o fluxo de ônibus e este fluxo for determinante para a velocidade efetiva. A extensão total das vias usadas por ônibus em Porto alegre é de 931,5 km, sendo destes 55,2 km em vias "exclusivas" ou corredores de ônibus (compartilhada com ônibus urbanos) e 3 km em vias semi-exclusivas (compartilhadas com lotações).

O embarque e desembarque de passageiros é sempre feito em estações (associadas a corredores e com alto fluxo de passageiros) ou em paradas (associadas a pistas parcial ou totalmente compartilhadas). O sistema possui 87 estações e 5692 paradas.

A passagem pode ser paga por meio de dinheiro ou através do uso do cartão TRI, introduzido em abril de 2008. O cartão pode ser carregado com vales transporte, passagens escolares ou passagens normais compradas antecipadamente.

Indicadores


Para melhor avaliar o sistema, as autoridades de trânsito elaboram um conjunto de indicadores. Embora haja pequenas discrepâncias entre diferentes órgãos, estes conceitos costumam ser razoavelmente similares. Os nomes aqui usados são os utilizados na documentação da prefeitura de Porto Alegre.

O conceito mais básico é o de passageiro. Embora o termo remeta ao usuário do sistema, aqui ele significa um bilhete, ou ainda, uma unidade de uso do sistema. Este uso pode ter sido integralmente pago, pago com desconto ou isento. Por exemplo, se uma pessoa pega dois ônibus para o trabalho em um determinado dia, ela conta como dois passageiros, mesmo que seu segundo trajeto seja isento. 

O indicador "passageiros" apresenta uma média de uso do sistema, mas, do ponto de arrecadação, ele é insuficiente, pois há diversas tarifas distintas. Para unificar este processo, é definido o indicador passageiros equivalentes. Ele transforma passageiros em sua proporção efetivamente paga da passagem. Assim, passageiros com tarifa integral são contabilizados como 1. Estudantes, como possuem isenção de metade da tarifa, são contados como 0,5. Isentos, como não pagam a tarifa, são contados como 0.

Passageiros, sejam eles plenos ou equivalentes, possuem as seguintes categorias:
  1. Comum: [Integral] Pagou em dinheiro junto ao cobrador;
  2. Vale Transporte: [Integral] Pagou via cartão carregado por vale transporte;
  3. Passagem Antecipada: [Integral] Pagou via cartão carregado antecipadamente;
  4. Escolar: [50%] Pagou via cartão carregado com passagem escolar;
  5. Integração Bilhetagem Eletrônica: [Isento] Trecho gratuito liberado via cartão, dado como bônus por comutação;
  6. Integração Trem-Ônibus-Trem: [90%] Pagou a passagem via cartão usado no trajeto anterior no sistema Trensurb;
  7. Passe Livre: [Isento] Teve sua passagem liberada no dia de passe livre;
  8. Isento: [Isento] Trecho gratuito liberado via cartão para certos grupos de usuários, como idosos.
Embora útil sob o ponto de vista de custos fixos, o conceito de passageiro equivalente é insuficiente para mapear os custos variáveis e a eficiência de uma linha. Assim, os agentes monitoram a densidade de uso, chamada de IPK (índice de passageiros por quilômetro). Este índice, que pode ser calculado tanto a pleno como para passageiros equivalentes, indica quantos passageiros usaram o sistema para cada quilômetro percorrido. Por exemplo, se uma linha de 10 km teve 20 passageiros em uma viagem, o IPK será 2.

Naturalmente, o IPK não é calculado para cada viagem. Assim, temos o indicador Rodagem Total, podendo ele ser referente a um dia, uma mês, um ano ou a qualquer outro período (os mais usuais são mês e ano). A rodagem total, assim como o IPK, pode ser calculado por linha, consórcio ou para todo o sistema.

Todos estes dados são fornecidos pela EPTC em sua publicação Transporte em Números, publicada anualmente. Muitos outros indicadores, como velocidade em horários de pico, são igualmente fornecidos. Há, entretanto, algumas dimensões não divulgadas no último relatório que poderiam ser muito úteis para a avaliação do sistema. São elas:
  • Tempo de Deslocamento Médio: Quanto tempo um passageiro leva para atingir o seu destino. Este é um indicador de qualidade que será fundamental na escolha do passageiro em qual modal utilizar;
  • Número de Conexões Por Passageiro: Quantas conexões os passageiros realizam em média para chegar ao seu destino. Aqui medidas estatísticas como média, moda, mediana e desvio padrão seriam muito úteis;
  • Distância Média Por Trajeto: Qual a distância média que uma linha realiza por viagem. Este resultado deveria ser apresentado consolidado e por linha;
  • Tempo Médio Por Trajeto: Em quanto tempo a viagem é realizada em média. Reduções nesta medida avaliadas historicamente podem apontar necessidades de ação das autoridades. Este resultado deveria ser apresentado consolidado e por linha.

Cálculo da Tarifa

Todos os indicadores acima apresentados são úteis pra avaliarmos a arrecadação do sistema. Entretanto, é necessário igualmente avaliar o custo. Após cada aumento de passagem, a Prefeitura libera a Planilha de Cálculo Tarifário. Através destes dados é feita a definição do custo da passagem.

Nesta planilha os dados são apresentados através do indicador custo por quilômetro. O custo por quilômetro indica quantos reais são necessários para operar cada quilômetro. Este é o indicador é usado até mesmo para custos fixos, sendo feita uma conversão. É importante frisar que estes custos são informados pelos consórcios! Mesmo havendo uma avaliação externa, é difícil ter certeza se os valores são corretos.

Os custos são apresentados na planilha em categorias, sendo os principais itens:
  • Combustível;
  • Lubrificantes;
  • Rodagem (pneus);
  • Valor da frota;
  • Remuneração;
  • Pessoal;
  • Despesas Administrativas;
  • Tributos (ISSQN, PIS, Cofins).
Os custos são somados e acrescidos dos tributos, obtendo-se o CQT (custo por quilômetro total). O CQT é dividido então pelo IPK equivalente (referente ao mês anterior). O valor resultante é a tarifa calculada, usada como base para a definição da tarifa decretada (na qual são feitas, basicamente, arredondamentos). Por exemplo, a tarifa calculada e decretada, para fevereiro de 2012, foram , respectivamente, R$2,8823 e R$2,85.

A Seguir

Para esta série de artigos, realizei um estudo detalhado dos indicadores fornecidos pela EPTC e prefeitura. Nos próximos artigos, vou avaliar o histórico do custo de passagem, os motivos do aumento da passagem, o impacto dos descontos e isenções, a falácia da transferência total, ineficiências do sistema, simulações e, por fim, apresentar algumas propostas de como melhorarmos a qualidade e o preço do sistema.

Outros Artigos da Série

Mais Sobre Custos: Análise detalhada de como funciona o sistema de cálculo de custo das tarifas. 
Receitas e DemandasComo está a situação da arrecadação do sistema de transporte. Como está se comportando a demanda dos passageiros. 
Por que as Passagens Sobem?Análise dos motivos por trás do aumento das passagens e comparação com outras cidades. 
Me dê Números!: Como usar todos estes conceitos para simular cenários. Disponibilizo uma planilha que permite calcular o valor da passagem simplesmente informando parâmetros para diversos cenários.
Uma Proposta Para o transporte Público: Uma proposta para reduzir o valor das passagens e melhorar a qualidade do serviço.

9 comentários:

  1. Mas é esta a polêmica planilha da reunião do COMTU, que é usada para gerar o valor da passagem? Pergunto pois além de não apresentar esse cálculo, não inclui dados importantes para a composição dele, como a margem de lucro das empresas.

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  2. Eu ia comentar sobre como a tarifa é calculada, mas acho que esse será o tema da próxima parte, certo?

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  3. Na verdade a parte do custo era isto mesmo. Eu gostaria de ir mais no detalhe, mas já perdi muitos neurônios tentando entender. Esta planilha detalhada da prefeitura é o samba do crioulo doido!!!
    http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/eptc/usu_doc/planilha_calculo_onibus_2012.pdf

    Há um sem número de problemas:
    1. Não achei uma maneira de transformar os custos fixos em variáveis, ao menos uma que bata com os resultados apresentados;
    2. Há informações fundamentais ausentes. Por exemplo, pelo que entendi, a depreciação depende do ano do veículo. Contudo, temos o valor de cada um dos veículos e sua quantidade de um lado. Do outro temos o valor de depreciação e a quantidade de veículos por idade. Contudo,não temos nada relacionando eles!
    3. Há itens com o custo por quilômetro ausente como - surpresa! - "remuneração"!
    4. Não há uma padronização na apresentação dos resultados.

    Enfim, se eu recebesse esta planilha como agente da EPTC eu devolvia na mesma hora e mandava fazerem direito. Simples assim!

    Se alguém quiser me dar uma mão a entender esta planilha eu agradeceria muito (me contate!). Conforme dica do @xnak, vou ver se acho alguma documentação do TCE sobre o assunto. Talvez lance uma luz no assunto.

    Assim, caso não apareça nada de novo, a parte de custos vai ficar, infelizmente por aqui.

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  4. Parei no "Bicicletas são flexíveis, mas pouco úteis para transportes de grandes cargas

    http://wisconsinbikefed.org/2012/04/24/bullitt-to-the-heart/

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    1. Esta história de "parei no..." é bastante desagradável. Mesmo que o argumento fosse ruim, parece algo sem propósito ignorar o texto inteiro por uma única frase que não faz parte do analisado no artigo.
      Sobre o link, isto prova que é possível, não que é eficiente. A vantagem da bicicleta é que possui um peso reduzido. Se aumentamos muito o peso ela perde eficiência. Achar que um modal é a panaceia para resolver todos os problemas é infantil.

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    2. Acho que o anônimo está pensando só no seu dia a dia. Imagina o Zaffari ou o Big enchendo o estoque de bici, é pouco eficiente e precisaria de uma frota de ciclistas.

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    3. Se fôssemos parar de ler sempre que encontramos algo do que discordamos, mesmo que seja realmente uma falha grave, nada mais leríamos. Realmente tais colocações são infelizes. Ainda mais quando anônimas.

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  5. Já dá para entender muita coisa. Por exemplo, eu não entendia por que nem a EPTC, nem a ATP parecem se importar com ônibus presos nos congestionamentos, já que isto aumenta bastante os custos.
    Ora, como a tarifa cobre os custos, não há interesse em controlá-los. Pelo contrário, quanto mais confuso for o transporte, mais difícil será fiscalizar os custos reais, o que deve agradar muito aos donos de empresas.
    Além disso, se os custos forem maiores, a remuneração dos proprietários também o será, pois é um percentual dos custos. Deste modo, os que chamam de "empresários" são remunerados por sua ineficiência!! Que feio, principalmente para eles que gostam de estufar o peito e se orgulharem de sua "eficiência".

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    1. Artigo mais detalhado aqui: http://discutindopoa.blogspot.com.br/2013/04/transporte-publico-mais-sobre-custos.html

      Sim, é verdade, o nosso sistema para definição de tarifas é bizarro. Do jeito que está o empresário nunca perde. Se a demanda cai, a passagem sobe. Se o sistema perde eficiência a passagem sobe. Se os custos sobem, a passagem sobe.

      No novo texto, fica claro que o único fator (oficial) que influencia o lucro das empresas é o custo da frota. Se o número de passageiros dobrar, em teoria, a passagem baixaria e (não aumentando a frota), o lucro deles seguiria o mesmo. Não me parece uma boa forma de incentivar investimento no sistema.

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